PARADIGMA DA FELICIDADE

 

Pesquisas recentes1 mostram que as pessoas possuem um ponto de estabi­lização da felicidade, um nível de alegria ao qual se retorna, não importa se o indivíduo tenha ganhado na loteria ou perdido a capacidade de utilizar seus membros. As experiências que muitos acreditam conduzir à felici­dade não passam de picos de prazer, que logo se dissipam e devolvem a pessoa a seu status padrão de contentamento. A neurociência está desco­brindo que, quando as pessoas falam em felicidade, na verdade estão descrevendo estados de espírito, momentos em que se sentem bem em comparação a outros em que experimentam algum tipo de desconforto. Parece correto, portanto, afirmar que as pessoas derivam seu conceito de felicidade de duas matrizes fundamentais: a intensidade e quantidade de experiências de pico de alegria e a média do estado de espírito no in­tervalo entre os picos eufóricos. Quando a vida de uma pessoa é cheia de boas notícias e seu estado de espírito mais comum é satisfatório, ela diz que é feliz. Regra geral, todos nós vivemos em ciclos de estados de espírito, e da dinâmica desses ciclos derivamos nosso "nível de felicidade".

TRÊS EQUÍVOCOS A RESPEITO DA FELICIDADE

Há gente que pensa que a felicidade tem fórmula, que não pode aconte­cer sem determinados pré–requisitos cumpridos. Mas a verdade é que certas coisas que muita gente acha que tornam a vida melhor – tais como dinheiro, beleza ou projeção social – não parecem ter importância como fator determinante da felicidade. Estudos realizados mostraram que as pessoas ficam felizes logo após um aumento de salário, mas que não há relação entre salário e felicidade definitiva. Não importa quão animado seja o dia da formatura, a educação não faz a vida mais feliz. Da mesma forma, avanços na vida social não têm efeitos profundos sobre a felicida­de, pois a felicidade não está relacionada às circunstâncias imediatas da vida. Oscar Wilde tinha certa razão quando afirmou que "neste mundo só há duas tragédias – uma é não conseguir o que se quer, a outra é con­seguir". De fato, nunca estamos satisfeitos, pois tão logo conquistamos um desejo, somos invadidos pela sensação de "não era bem isso o que eu queria".

Outro equívoco muito comum a respeito da felicidade é a expectati­va de viver num estado de espírito de alegria perene. O sentir–se bem não é permanente, nem poderia ser, pois o resultado seria uma compla­cência prazerosa. "A natureza utiliza a dor e o prazer como um bastão para nos guiar", diz o psicólogo David Lykken.2 Há quem diga, e com certa dose de razão, que a insatisfação é a mãe do progresso, pois a engenhosidade humana é resultado da busca constante de mais conforto e de menos sofrimento. Por essa razão, um povo feliz pode se tornar um povo inerte, acomodado em um prazer que anestesia e que paralisa.

Um terceiro equívoco a respeito de felicidade é a crença no destino aleatório, como se algumas pessoas tivessem nascido para ser felizes e ou­tras não. Na verdade, a felicidade não chega por acaso, desrespeitando a autonomia da pessoa que a experimenta. Isso significa que não estamos ao sabor das alterações de humor, como se elas não dependessem da maneira como vivemos. Somos responsáveis pela qualidade da vida que temos. Let it be nunca foi uma filosofia de vida eficaz.

O ESTADO DE ESPÍRITO PERTURBADO

O grande desafio que enfrentamos na correria do dia–a–dia diz respeito à capacidade de administrar os estados de espírito com que atravessamos nossa rotina diária e desfrutamos as experiências simples que compõem a teia do que chamamos vida. Aprendi que a vida não consiste em poucos grandes momentos, mas sim em milhares de pequenos momentos aos quais emprestamos significado. Casamos uma vez, e devemos viver casados para sempre. Graduamo–nos academicamente algumas vezes, mas devemos exercer nossas compe­tências todo dia, numa rotina que chama­mos trabalho. Olhamos o vidro do berçário umas poucas vezes em busca dos nossos recém–nascidos, mas devemos contemplar suas faces cheias de expectativas todas as manhãs e jamais deixar que se deitem sem o nosso afago (e quando eles saem do ninho, que falta sentimos!). Enfim, é mesmo verdade que a felicidade não depende tanto, por exemplo, de dias como o do casamento, o da formatura e o da festa na maternidade, mas sim do romance que se aprofunda, do trabalho que se realiza e da vida em família num ambiente de afeto e de possibilidades.

É justamente nessa teia de atividades rotineiras que somos desafiados a experimentar a felicidade. No contexto desses milhares de pequenos momentos é que somos desafiados a cultivar um estado de espírito satisfatório, próprio de quem aprende a saborear o amor aos pedaços.

Muitas pessoas, entretanto, se tivessem de descrever seu estado de es­pírito mais comum, poderiam substituir a palavra felicidade por outras como preocupação, ansiedade e angústia. São palavras quase sinónimas, que identificam um estado de espírito perturbado e insatisfeito. Sofrem com isso os que estão conscientes desse estado ou que, de vez em quando, surpresos, deparam–se com ele.

Esse estado de espírito perturbado tem diversas causas. Uma delas é o excesso de responsabilidades e de solicitações, que nos conduz ao excesso de ocupação. Apesar de estarmos tão atarefados, carregamos a constante sensação de que ainda não cumprimos todas as nossas obrigações ou de que não as cumprimos com o padrão de qualidade que gostaríamos. Os diferentes papéis que desempenhamos na vida, como, por exemplo, côn­juges, pais, filhos, profissionais, amigos, cidadãos, cobrem–nos de obriga­ções intransferíveis e lotam nossas agendas. Por essas razões, acabamos assumindo mais compromissos do que somos capazes de cumprir ade­quadamente, e o resultado é que oneramos uma ou outra parte de nossa saúde, senão todas elas.

Não apenas estamos cheios de responsabilidades, de solicitações e de ocupações, como também convivemos com um excesso de suposições. Possuímos uma mente repleta de "se". Essa multidão de "se" é responsá­vel por nossas preocupações: se o exame der positivo, se eu for cortado este mês, se eu não alcançar minhas metas de vendas, se o ônibus atrasar, se ele não me quiser mais, se o dinheiro não for suficiente, se o proprie­tário não aceitar negociar, se, se...

Estranhamente, estar sobrecarregado tornou–se símbolo de status, e a ausência de preocupação uma situação perigosa que sugere falta de realis­mo, negligência ou irresponsabilidade. Por alguma razão (e, por vezes, infelizmente acertada), acreditamos que restaurante bom é aquele que tem fila de espera, médico competente é aquele que tem horário disponível para consultas apenas no próximo mês, profissional excelente é aquele superatarefado.

Além das responsabilidades, ocupações, solicitações e suposições, multiplicam–se sobre nós as possibilidades. Vivemos sob a sugestão de que não podemos deixar de assistir àquele filme, de ler aquele livro, de visitar aquela cidade, de almoçar naquele restaurante ou de conhecer aquela pessoa. Estamos na era da informação, e a cada semana, ou mesmo a cada dia, um novo livro em nossa área de atividade é publicado, uma nova competência profissional é lançada como moda e uma nova tranqueira tecnológica é despejada no mercado. Além disso, dezenas de e–mails com recados do tipo "essa você não pode deixar de ler" lotam nossas máquinas diariamente.

A VIDA E SEUS LIMÕES

A vida nem sempre nos trata como desejamos. O mundo é injusto. As tra­gédias e calamidades não escolhem a quem tentar destruir. De quando em vez, nada mais coerente do que estar com o estado de espírito perturbado.

Uma das mais intrigantes passagens da vida de Jesus aconteceu às portas do túmulo de Lázaro, seu amigo, narrada no Evangelho de João, capítu­lo 11. Na verdade, a notícia de que Lázaro estava gravemente enferrno chegara quatro dias antes, com as palavras: "Aquele a quem tu amas está à morte". Jesus não se abalou com a notícia nem alterou seus planos ime­diatos, pois tinha propósitos muito mais elevados do que a simples cura física de um amigo. Ao chegar à casa de Lázaro, recebe a notícia de que ele estava morto havia quatro dias. Nesse momento, chora. Mas por que chora? Aliás, parece mesmo contraditório que Jesus, sabendo que res­suscitaria Lázaro dali a poucos minutos, se entregasse às lágrimas e se deixasse invadir por sentimentos, para a maioria de nós, indesejados.

Mas acredito em outra possível leitura do evento. O fato de que Lázaro voltaria à vida em poucos minutos não anulava a realidade de que, naque­le exato momento, estava morto. Diante de um amigo morto e rodeado de pessoas desesperadas, nada mais coerente do que sentir o espírito pertur­bado, no mínimo, por solidariedade e empatia. Jesus vivia um momento de cada vez. Aquele era um momento de morte, desespero e desesperança. Jesus chorou com elas, chorou por elas e por ele mesmo, quem sabe.

Nada mais natural do que o pranto no momento do luto, a angústia na situação de fome, o medo no meio da guerra, enfim, a cara contorcida no momento em que a vida mostra–se amarga. Isso significa que nem todas as pessoas que vivem com um estado de espírito perturbado são responsáveis pelas causas que geraram a perturbação. Os profetas da auto–ajuda dizem que a causa do sofrimento não é o mundo, e sim nossa atitu­de diante dele. Mas nem sempre o estado de espírito perturbado começa do lado de dentro do coração. Não raras vezes, resulta de circunstâncias adversas, variáveis fora do controle de mortais como nós. O mundo não obedece à justiça retributiva: coisas boas para pessoas boas, coisas ruins para pessoas ruins. Até porque ninguém é totalmente mal. E ninguém é totalmente bom. Assim também o mundo e a vida. A história, que tem como protagonistas pessoas em quem o bem e o mal se misturam e se confundem, não poderia ser tão exata. Por essa razão, de vez em quando acontecem coisas ruins para pessoas boas, coisas boas para pessoas ruins, e ninguém se surpreende mais quando acontecem coisas ruins para todo mundo.

Portanto, o melhor que temos a fazer é repetir a conduta do poeta bíblico. Ao menor sinal de perturbação, devemos perguntar: "Por que você está assim tão triste, ó minha alma? Por que está assim tão perturbada den­tro de mim?". Não serão poucas as ocasiões em que ficaremos surpresos quando a alma nos oferecer suas razões. Nessas horas, sentar e chorar é um ótimo remédio. Afinal, quando a dor é real e as causas podem ser cla­ramente identificadas, a lágrima é a menor distância do sorriso.

Mas além dos excessos e das circunstâncias da vida, nosso estado de espíri­to perturbado é influenciado também por nossas características pessoais, isto é, o conjunto de filtros herdados ou aprendidos por meio dos quais interagimos com o mundo. Praticamente todas as nossas posturas na vida podem ser explicadas pelo mix personalidade–cultura–ambiente social. Poucas são as pessoas que conseguem estourar essa bolha e caminhar em direção à transformação pessoal e à contracultura, impondo sua identi­dade própria e assumindo suas preferências independentemente da úl­tima moda.

Por exemplo, pessoas que cresceram num ambiente de cobranças e de exigências exageradas acabam desenvolvendo um general dentro de sua consciência e sofrem de um perfeccionismo doentio, enquanto outras são mais complacentes, displicentes e até mesmo irresponsáveis. É evidente que cada uma reage ao atraso em uma reunião importante ou à demora na entrega de uma encomenda de maneira diferente. Há pessoas que se inco­modam com outras pessoas, enquanto outras se incomodam com coisas. Podemos encontrar gente que fica insuportável quando não dorme o sufi­ciente, e outros que se transformam quando estão com fome. O fato é que, se há dez pessoas vivendo a mesma situação, provavelmente haverá dez reações diferentes.

O grau de maturidade pessoal também afeta radicalmente o estado de espírito. Os motivos considerados suficientes para experimentar alegria e dissabor variam de pessoa para pessoa, e isso está relacionado com os valo­res e até mesmo com o caráter. Uma criança chora quando cai seu sorvete, atitude que não se espera de um adulto. Por outro lado, é comum ouvir crianças perguntando: — Por que a mamãe está chorando? Demonstram, assim, sua incapacidade de discernir a dor para todos evidente. Há pessoas que não conseguem dormir porque atrasaram o pagamento do aluguel, enquanto outras não perdem o sono mesmo devendo meses de cartão de crédito. O estado de espírito pertur­bado pode ser explicado pela escala de valores de uma pessoa e pela maneira como se vê responsável diante do direito de viver.

Mas além de todas essas limitações herdadas e ou desenvolvidas, tal­vez o maior fator de distinção na maneira como as pessoas reagem à vida é a fé. A fé percebe uma Presença, a presença de Deus. A fé invoca uma Presença, a presença de Deus. A fé sabe que, por trás do cenário visível, das estatísticas e das probabilidades, existe Alguém interagindo na situação:

Deus. Os recursos humanos resultantes da fé são ainda um mistério para a ciência. Quem é capaz de exercitar a fé vê mais longe, voa mais alto, chega mais adiante.

INIMIGO ÍNTIMO

As discussões a respeito de ser o homem essencialmente bom, ou essencial­mente mau, como já observamos, são extensas e não nos interessam aqui, pelo menos por enquanto. Mas a experiência diz que, independentemente do que o homem é em essência, ele é naturalmente egoísta, egocêntrico, voltado para si mesmo e para seu próprio bem–estar e conforto. Essa característica do homem, em que predomina o ego e faz com que ele desenvolva uma espécie de teomania, é aquilo que os teólogos chamam pecado essencial ou original. Algo como um status do ser que pretende bastar–se. Em outras palavras, a criatura deu as costas para o Criador e pretendeu construir seu próprio mundo, com suas próprias leis, e administrá–lo com suas próprias capacidades.

A Bíblia fala de três tipos de pessoas: natural, carnal e espiritual.3 A primeira, natural, é simplesmente dominada pelos instintos da biossobrevivência, mais parecida com um bicho do que com gente. A se­gunda, carnal, vai um pouco mais longe e adquire consciência, mas dela se utiliza apenas para tentar exercer domínio em benefício próprio. A terceira, espiritual, transcendeu seu próprio universo de interesses e de necessidades e tornou–se altruísta, solidária, capaz de partilhar e de em­preender na comunhão.

Em termos simples, o ser humano está em constante luta entre essas dimensões de sua constituição. Em linguagem bíblica, diz–se que o espí­rito luta contra a carne, e todo aquele que deseja experimentar a vida plena deve negar seu próprio ego. Esse conflito é ilustrado em extremo na experiência de Paulo, o apóstolo, quando grita desesperado: "Miserá­vel homem que eu sou! [...] Não entendo o que faço. Pois não faço o que desejo, mas o que odeio. [...] Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá–lo".4O que ele está dizendo é que existe dentro dele um inimigo íntimo, um ego que o impede de expressar sua verda­deira identidade. Por essa razão, a Bíblia diz que o homem é pecador, isto é, vive sob o domínio "da carne" e do ego, fazendo a vontade de seus desejos e pensamentos autónomos em relação ao Criador, matriz e fonte de vida.5

Não tenho dúvida de que boa parte, senão a totalidade, da infelicida­de humana explica–se por essa tendência de viver de maneira egoísta. Num mundo tão diverso, ninguém consegue ser feliz se tudo o que valoriza é seu conforto e bem–estar pessoal. Por mais distintas que sejam, todas as tradições de espiritualidade têm um ponto comum: concordam que as pessoas mais estabilizadas na vida, e por que não dizer, felizes, são aquelas que cultivam o espírito abnegado, solidário, altruísta. Esse é mais um, se­não o, paradoxo da vida: o caminho da auto–realização é a negação do ego.

© 2010 Todos os direitos reservados.

Crie um site grátisWebnode